A Morte de Ivan Ilitch | Análise Crítica

 

Análise da novela A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, sob o olhar da Psicanálise e o texto Mal-estar na Civilização, item III, de Sigmund Freud.

Conforme categorizado por Freud, no texto Mal-estar na Civilização, o sofrimento humano pode ser dividido em 3 partes complementares: soberania e prepotência da natureza, fragilidade do nosso corpo e inadequação às regras morais e culturais. No prelúdio do item III, do texto supramencionado, o autor incide uma provocação sobre as duas primeiras divisões do sofrimento, dizendo serem elas inevitáveis a qualquer organismo e deixando implícito que a busca a não redenção ao inexorável ocasionaria em uma falha miserável. Tais pontos estão intimamente ligados à dinâmica da felicidade, quando um dos maiores causadores do sofrimento advém do poder superior da natureza e da fragilidade de nosso organismo, perante à ela.

Com isso, trago à luz as vivências do juiz, da alta corte, Ivan Ilitch, considerado um dos protagonistas mais tocantes das novelas de Liev Tolstói. Ivan, durante toda a obra, é atravessado por um acontecimento inevitável e inesperado que o causa demasiado sofrimento e desconstituição social. O alto oficial enfrenta uma doença terminal que, além de anunciar sua iminente morte diariamente, o deteriora as partes e energia, fazendo o ser incapaz de dar continuidade ao que já havia planejado para a sua vida e impossibilitando que seja o mesmo indivíduo que seus familiares, amigos e médicos não mais esperam.

Dito isso, no que Freud se refere, no tocante à civilização e sociedade, aqui será mais enfatizado em uma escala micro, em comparação à toda a comunidade que o cerca. Como Freud postula, tudo aquilo com que nos protegemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização e veremos, mais à frente, como Ivan Ilitch se utiliza de muitos mecanismos da civilização para tentar sentir-se são. Tolstói descreve os acontecimentos da novela de maneira gradativa, acredito eu buscando ser capaz de fazer com que todos os leitores possam, de fato, morrer junto do protagonista, mas também facilitando o processo de análise que dá-se a seguir.

Gostaria de iniciar a dessecação com uma reflexão, posta por Freud, que nos seguirá até o último ponto do presente trabalho:

Descobriu-se que o homem se torna neurótico porque não pode suportar a medida de privação que a sociedade lhe impõe, em prol de seus ideais culturais, e concluiu-se então que, se estas exigências fossem abolidas ou bem atenuadas, isto significaria um retorno a possibilidades de felicidade.

Ivan Ilitch, no momento em que descobre de sua doença terminal, paulatinamente se vê privado, de início, pela natureza e, consequentemente, pelo seu corpo. Na medida em que tal enfermidade não atinge apenas ele, mas todos que cruzam seu caminho, os níveis de privação se amplificam, tornando-se insuportáveis para o juiz. No quarto capítulo da obra, o narrador inicia a descrição dos acontecimento com a frase Todos estavam saudáveis, referindo-se às pessoas que cercam Ivan e, daí por diante, passa-se a ser possível destacar os antônimos de Ivan, perante todos os outros. Extremamente tocante. As limitações que passam a tomar posse de Ivan são caracterizadas com destemidos detalhes e por mais que sintamos estar ali, diante dele, nunca poderíamos sermos capazes de saber exatamente a intensidade do sofrer de Ivan. Interessante como Freud pontua isso, com o seguinte trecho:

Por mais que nos arrepiemos ante determinadas situações… é para nós impossível nos sentirmos na pele dessa gente, intuir as mudanças que o torpor original, o gradual entorpecimento, a cessação de expectativas, as maneiras mais finas e mais grosseiras de narcotização provocaram na suscetibilidade para sensações de prazer e desprazer. Na possibilidade de dor extrema também passam a agir dispositivos psíquicos especiais de proteção.

Freud refere-se também à função das realizações e instituições da civilização para que nos afastemos de nossos antepassados e, com isso, proteger os homens das ameaças naturais e para a regulamentação das relações entre eles, fazendo uma diferenciação rica entre os avanços da tecnologia e ciência, perante as bases da Igreja. Ivan busca amparo nos dois primeiros pontos, a fim de amenizar o sofrimento que a natureza foi capaz de esgueirar sobre ele e passa a ter consultas diárias, na esperança de ser afastado de uma possível morte antecipada. Antecipada apenas para Ivan, o qual não conforma-se com o fato de não ter sido avisado anteriormente que estaria na última estação de suas vivências. Sua angústia é tamanha que posso evidenciá-la com a sua fala mais incisiva, para mim, sobre: Havia luz e agora há escuridão. Eu estava aqui e agora estou indo embora. Mas para onde? E com tais tecnologias, como pontua Freud, o homem aperfeiçoa os seus órgãos ou elimina os obstáculos para o desempenho deles. É notório como tal força falhou lamentavelmente para com suas expectativas.

E não deixando barato, Ivan busca, devido o seu desamparo diante da ciência, a religião. Não sendo capaz de poder transformar-se no que Freud nomeia de deus protético, Ivan apenas tem nas mãos a arma da submissão. Tal submissão também se faz explicada na obra de Freud, onde ele pontua: Um fator, assim, ainda hostil à civilização, já devia estar presente na vitória do cristianismo sobre as religiões pagãs. Estava ligado à depreciação da vida terrena, efetuada pela doutrina cristã. Peço vênia para recortar uma observação nietzschiana sobre o cristianismo, a qual pode evidenciar e explicar o porquê de a mesma não ter sido capaz de causar-nos, como o próprio Freud pontua, maior satisfação prazerosa, nem os fez mais felizes:

O cristianismo é chamada a religião da piedade. A piedade se opõe a todas as paixões revigorantes que aumentam a energia da sensação de viver: é deprimente. (…) A piedade torna o sofrimento contagioso. (…) Se medirmos os efeitos da piedade pela gravidade das reações que provoca, aparece sob uma luz muito mais clara seu caráter de ameaça a vida. (…) Shoppenhauer nisso tinha razão: por meio da piedade nega-se a vida, e se torna a vida digna de ser negada. (…) no papel de protetora dos miseráveis, é um agente principal na promoção da decadência; a piedade persuade à extinção.

No entanto, Ivan, devido sua história de vida e sua relação estreita com a ciência, apesar de pena-la, não foi capaz de satisfazer-se como esperava que iria e até deprecia-se com a falta do que o causaria maior depreciação: Chorou por seu desamparo, por sua terrível solidão, pela crueldade das pessoas, pela crueldade de Deus, pela ausência de Deus. (…) Ele não esperou resposta e chorou pelo fato de que não havia nem poderia haver resposta. E por mais que existam muito mais a ser dito sobre os dois primeiros aspectos causadores do sofrimento do homem, acredito ser hora de passarmos para o último ponto, que nos renderá maior análise.

O terceiro aspecto trazido por Freud é sobre a inadequação às regras morais e culturais a nós impostas e, quanto a isso, Ivan se faz completamente erradicado. Na sociedade da qual Ivan se faz presente, e acredito que até os dias e hoje continuam assim, doentes não possuem espaço para complementar a vida das outras pessoas, pois são encarados como empecilhos no caminho de quem busca prosperar. Devido a isso, Ivan passa por um declínio intenso com seus familiares, os quais Ivan assegura não estarem preocupados o suficiente com o seu possível desaparecimento. Ivan busca, com todas as forças, ser o mesmo juiz, pai, marido e amigo de sempre, mas todos a sua volta o tratam como indefeso e frágil, dificultando o processo de empoderamento do mesmo. A diligência com que ele buscava permanecer vivo, também não lhe foi favorável e, muito menos, bem visto aos que o lhe cercam e prezam por demonstrações de força e confiança. Tudo que ele queria, como pontuado na obra era que o acariciassem, que o beijassem, que chorassem por ele, como afagam e consolam as crianças. Ivan, conforme os meses passavam, quebrava com o fator inútil que é muito apreciado pela civilização: a beleza. Com a incapacidade de poder cuidar-se sozinho, Ivan quebra com o requerimento da limpeza, no momento que passa a tomar menos banhos e lhe ser impossibilitado de rotinas mais vaidosas. No entanto, na obra, Ivan parece ser o único a preocupar-se com a ordem das coisas, por sempre ter sido um sujeito sistemático e organizado, o que muito faz jus ao que construiu a sua vida toda. Mas podemos dizer que Ivan quebra a ordem social das coisas, no momento que passa a ser uma força acentuada na rotina de outras pessoas. Assim, ele torna-se uma ameaça à compulsão da repetição, a qual evita, nas palavras de Freud, a oscilação e hesitação em cada caso idêntico. Trago, neste exato ponto, um pensamento de Ivan que parece ter sido tirada desta exata reflexão: Ele precisa pôr o cômodo em ordem, e eu estou atrapalhando, eu sou a sujeira, a desordem. Quase me questiono se Tolstói não havia lido Mal-estar na Civilização quando escreveu essa frase, ou se apenas quis me presentear com a possibilidade de colocá-la aqui. Ivan quebra as regras inúmeras vezes, buscando não ser apenas mais um enfermo e tenta voltar a trabalhar e sair, vendo-se, todavia, impossibilitado por suas condições diminuídas.

Gostaria, aqui, de abrir um parênteses quanto a sua capacidade diminuída, buscando frisar e destacar a importância de lembrar-nos que uma enfermidade não é suficiente para se considerar alguém incapaz ou apagado. Ivan nos mostra ser muito capaz de poder dar continuidade ao restante de sua vida, mas, na minha particular opinião, a privação de auxílio, reconhecimento, afeto e compreensão foi o que o matou mais rapidamente. Como o narrador pontua: A esposa, sem qualquer motivo, como parecia a Ivan Ilitch, de gaieté de coerur (por capricho), como dizia para si, começou a destruir o que havia de agradável e decente na vida. E seus relacionamentos eram como ilhotas onde eles atracavam por um tempo, mas depois novamente lançavam-se a um mar de inimizade secreta, que manifestava no afastamento um do outro. E toda essa mentira ao seu redor e dentro de si foi o que mais envenenou os últimos dias da vida de Ivan Ilitch.

Ivan também compartilhava de grandes realizações intelectuais e científicas que, como aponta Freud, são essenciais para caracterizar a civilização. Não obstante, ele é retirado da cena a qual ele mesmo lutou para construir, quando é presumido que sua habilidade jurídica está escassa ou, até mesmo, acabada. Ivan era um regulador das normas e julgava aqueles que agora usam das mesmas para controlá-lo. Ivan fazia parte do cumpridor da exigência cultural da justiça, onde, como Freud pontua, é garantido a ordem legal de que uma vez posta lá, nenhum indivíduo será capaz de violá-la em prol de outro. Ivan não deixa de necessitar de vizinhos, quanto colaboradores, para serem utilizados como objeto sexual, como membro de uma família e de um Estado, mas parece ter que peneirar muita mais para conseguir achá-los e, obviamente, isso o trouxe severas consequências. Apenas pontuo, como digno de detalhe e curiosidade, que felizmente Ivan encontra um indivíduo capaz de prover-lhe, minimamente, o que ele tanto precisava, mas direciono-os para a leitura da obra, a fim de saber como isso se desenrolou.

A falta de liberdade que Ivan se verifica não é direta, mas é evidenciada na falta de realização de todas as suas vontades. Os costumes sociais são responsáveis pela privação que ele enfrenta e, mesmo sendo aplicada pela sociedade, ela não é um bem cultural. Como Freud pontua: O impulso à liberdade se dirige, portanto, contra determinadas formas e reivindicações da civilização, ou contra ela simplesmente. (…) ele sempre defenderá sua exigência de liberdade individual contra a vontade do grupo. E acredito eu, junto de Freud, que, sem liberdade, não há felicidade. E fazendo jus ao filme Na Natureza Selvagem, o próprio protagonista, Cristopher McCandless, escreve uma frase muito marcante, coincidentemente em um livro de Tolstói, que destaca exatamente isso: felicidade só é verdadeira quando compartilhada.

Por fim, gostaria de finalizar minha análise com o destrinchamento do seguinte trecho de Freud: Em terceiro lugar, enfim, e isto parece ser o mais importante, é impossível não ver em que medida a civilização é construída sobre a renúncia instintual, o quanto ela pressupõe justamente a não satisfação de instintos poderosos. Essa “frustração cultural” domina o largo âmbito dos vínculos sociais entre os homens; já sabemos que é a causa da hostilidade que todas as culturas têm de combater. Ela também colocará sérias exigências ao nosso trabalho científico; aí teremos muito o que esclarecer. (…) se não for compensado economicamente, podem-se esperar graves distúrbios.

Tal passagem foi, logo acima, analisada por Freud e Nietzsche, mas gostaria de trazer mais um autor para que possam finalizar a reflexão que venho instituir. A tal ordem almejada faz de nós sujeitos mesquinhos e distantes, maldosos e desumanos. Ela tem lá as suas vantagens, mas faz de nós o predador mais perigoso de nós mesmos, ou, como pontua Thomas Hobbes, em o Leviatã: Homo homini lupus. E ela não engana nenhum de nós, mesmo fazendo-nos perante à ela, assim como Ivan Ilitch o fez, quando o narrador diz: Ivan Ilitch rende-se àquilo, como outrora se rendera aos discursos dos advogados, mesmo já sabendo muito bem que todos eles mentiam e por qual razão mentiam. E, assim, se fez uma das frases mais populares de Liev Tolstói, quando ele condena Ivan ao pensamento mais vil e injusto que eu já pude me por a ler: “Talvez eu não tenha vivido como é preciso”, vinha-lhe de súbito à mente. “Mas como não, se eu fiz tudo como se deve?.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HOBBES, T. Leviatã: livro I. Trad. JP Monteiro et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo: maldição ao cristianismo: Ditirambos de Dionísio. Editora Companhia das Letras, 2007.

TOLSTÓI, Liev. A morte de Ivan Ilitch. Antofágica, 2020.

Obs. É possível encontrar tal análise no meu Medium também! Segue o link: https://medium.com/@rattomarrano/a-morte-de-ivan-ilitch-resenha-cr%C3%ADtica-b64f1b5eb0f3




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