Ínterim de tempo



Ínterim de tempo

A problemática do intervalo de tempo entre o passado e o presente



Acordei exigindo estar desacordada, mas como todos os meus pedidos enviados ao céu acabam extraviando, transferi-me para fora do contexto hostil em que me encontrava. O aroma dentro do veículo coagia-me a sentir a ferrugem que escorregava para fora dos parafusos envelhecidos da lataria. A calmaria da cidade, devido à pandemia vigente, ao menos, era capaz de aliviar-me das dores que eu mesma causo. A sinuosidade das curvas nunca foi amiga de minhas cautelas e mesmo sem a presença das buzinas apressadas, por detrás de mim, forço-me a pisar um pouco mais forte no acelerador, a fim de espantar os fantasmas contemporâneos da minha realidade. Aproximando-me da capela histórica da cidade, recuso-me a olhar para os retrovisores ao meu lado, quando me recordo da lenda trágica da Noiva da Estrada de Guararema.

A escuridão dos átomos que nos cercam não permite que eu chegue em casa em acalento e papai dirige mais rápido que o normal. O carro lotado faz com que nossos suores se entrelacem e fundem um novo corpo, devido à vivacidade de nossas emoções. Papai está cansado, mas possui energia criativa demais para deixar-nos tentar adormecer. Isto posto, ele passa a dissertar sobre uma história amedrontadora demais para fazer com que sintamos pena e empatia pela mencionada.

“Sabem…” ele diz, entediado, enquanto observa a sua volta “Neste exato ponto em que dirigimos, morreu uma noiva.”

O nosso silêncio foi o estímulo discriminativo perfeito para que ele continuasse a tagarelar.

“Dizem que se você olhar para o retrovisor e vê-la, ela irá pedir carona para você!”

Imediatamente, movimentando nosso imaginário, ele implantou sua presença dentro do carro.

“Principalmente se você for homem!” Ele frisa, olhando para meus irmãos encolhidos.

Neste momento, pude sentir minha taquicardia escapulir e vi-me a dar risada e apontar para os indivíduos que representam o que a poucos segundos eu estava também sentindo. Conquanto, não me atrevi a ser a inquilina a desafiar o território de uma noiva interrompida. O resto da viagem foi tão torturante para mim quanto foi para eles.

Percebo que a inquietação é mais oriunda de culpa do que de razoabilidade. Todavia, meus olhos permanecem cravados para o centro da estrada e, de tanto vivenciar tais sentimentos, decorei os movimentos que são necessários para que eu não perca a noção dimensional da estrada. Assim que ultrapasso a zona fatigante, posso aproveitar os pontos clássicos de minha viagem. Posso avisá-los de um espetáculo cotidiano no início da estrada de Mogi-Guararema: o caso do tucano narcisista. Apesar da tristeza de sua matriz, no prelúdio da rodovia vocês poderão visualizar um esbelto tucano a se maravilhar com o seu reflexo, pelo vidro de um estabelecimento privado. De todas as vezes que passei por lá, ele foi capaz de despertar-me inveja, mesmo sendo de uma anatomia completamente distinta à minha. Convenhamos que não é muito penoso conseguir desestabilizar a casca afinada de minha personalidade.

Quando estou assim desanimada, tudo ao meus olhos torna-se mais melancólico. Um pouco antes de agora mesmo, passando pelo Parque Centenário, foi sensibilizada pela presença dos gansos residentes do logradouro, na porta do local, a aguardar por suas visitas. No entanto, elas não virão. Difícil pensar que, durante anos como anfitriões, precisam acostumar-se com o fato de que estarão por conta própria nesse ínterim de tempo. Acho que posso imaginar como eles se sentem. Nunca me foi fácil aceitar a individualidade e autossuficiência. Assim como eles, eu namorava as pessoas à minha volta, mas elas evidentemente não sabiam. Foi como sentir-se, mais uma vez, solitária, mas já sabendo de que, de fato, nunca estive acompanhada.

Acho um tanto quanto cômico pensar que sempre que as coisas destroçam-se de uma hora para outra, mas não por acaso, elas são realmente o resultado do que acaba de acontecer. Se eu perfazer o caminho de minhas desilusões, posso transcreve-las desde meus anos primários. Hoje, e cotidianamente, o que explode é resultado da negligência diária de minhas ações passadas e toda a imposição que faço para esses momentos atuais é a representação da minha falta de razão. Por que, então, preocupar-me com o que me inquieta agora? Por que insistir em coisas que só seriam resolvidas anos atrás? Não seria muito mais eficaz largar tudo que exige ações repletas de impossibilidade? Essa mutilação psíquica de nada vai agregar nos tormentos coletivos que me rodeiam. A pedra de toque já se deteriorou a muito e não tem soberana que possa substituí-la e, com isso, o desabamento da estrutura já era previsível. Escrever sobre isso prescreve o exemplo do efeito mola. Seria equivocado dizer que apenas desestabiliza-se aquele que já indagava-se à respeito do questionamento? Nunca mais seremos os mesmos. E, honestamente, até que ponto isso torna-se algo fajuto?



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